segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Forrest Gump

Run, Forrest run!


O estranho síndrome Forrest Gump assalta-me por vezes com grande acuidade, como uma força que impele a urgência de fugir, de correr sem parar, para fugir daqui, depressa... já... sem destino, só pelo prazer de sair para um lugar incerto... que fica em frente e não tem retorno à vista. O maior prazer é saber que fica em frente, numa estrada que se abre mas cujo destino se desconhece. É um impulso que vem de dentro. Uma mola chamada Ir!

Pode ser estranho, um pouco assustador mas simultaneamente parece fácil de executar, não carece de objetivos precisos nem de planos traçados, basta ir em frente, pois será o próprio caminho a orientar a senda a prosseguir.

As surpresas da viagem são o único empurrão, a força motriz, a par daquilo que é preciso mesmo fazer para ir sobrevivendo: comer, dormir, responder talvez a algum rasto de espanto...  Ir é o único objetivo, a única certeza é que não se pode parar, há que continuar a correr ou a caminhar mais lentamente se o corpo cansar, sabendo que é o destino que nos orienta e surpreende e que não tenho de me preocupar muito mais com as consequências.

É ir, mochila às costas, mantimentos básicos, alguns abrigos para pernoitar, um lugar quente para parar, refletir, descansar e prosseguir ...  até onde não sei e essa é a parte gira.

Ir porque sim, porque o imobilismo e a angústia me tolhem e cortam pedaços de vida. Ir porque o meu lugar pode não ser aqui, porque pode não ser em lado nenhum, mas só o movimento o comprovará. Porque a vida, o amor e o meu papel de gotinha insignificante no universo deve estar algures por aí, à minha espera.

Ir porque a estrada é larga e parece comprida demais para que faça sentido fixar uma meta. Por isso, há que ir sem ambições, nem destino, pelo amor à natureza, à vida e aos outros (eventuais avatares), pessoas não familiares, sem compromissos. 

Gente que encontrarei e me será indiferente, me tornará invisível, gente simpática e acolhedora mas sem amor para dar. Gente louca e capaz de se apaixonar e de me levar a voar. Gente simples que me aquecerá as noites mas não a alma, gente boa, gente má... que nas bermas da estrada encontrarei. 

Não sei muito bem para onde vou, mas talvez reconheça essas pessoas e esse lugar de destino, aquele que me dará um abrigo feliz e a plenitude de me sentir útil aos outros. Só essa retribuição me dá alento. Esse lugar de paz, de me encontrar com a minha própria existência, da qual até eu própria duvido, é essencial. Há um ponto de equilíbrio e recompensa, de felicidade, até ... no fim desse caminho para onde vou a correr estupida e caoticamente como o F.G.. Onde fica, não sei .

Talvez descubra, talvez não!

Mas para isso é preciso correr sozinha, que é como estou e me sinto. 

Foi a solidão da liberdade que escolhi, foi nela que mergulhei conscientemente e em alegria. Não culpo ninguém, não posso esperar nada dos outros; nem de apoio, nem de compreensão por parte de alguém.

Não posso exigir nada. A única coisa que ambiciono não se exige, nem se compra, nem se procura. Alguns encontram, como que por acaso ou por milagre, têm sorte. 

Também já tive: vislumbrei e vivi intensamente, enquanto foi possível, a centelha brilhante de um alma enamorada, espelhada em olhos alheios, que me confirmaram a sua existência. Foi bom. A paixão dura o tempo da passagem do cometa mas fica, cá dentro, um brilho que até na escuridão eu vejo. E sei ver se é amor, se a poeira dourada deixada pelo astro é minha e me alimenta e adormece. Mais ninguém vê, muitos nem sabem desta reserva de energia vital. Armazenei uma reserva de paixões vividas e consequentes, fazem parte de mim. São talvez o motor que me impele a correr pela estrada imensa, de aparente non sense, que a simplicidade de um Forrest Gump meio tonto me inspira.

Pego na mochila. É noite de nevoeiro, o outono chegou de mansinho, com calor diurno e com frio e humidade na noite que sobe do mar. Vou para a rua num lugar quase desabitado, rural, distante? Só teria o barulho do mar como companhia e orientação. 

Se sair agora vou enfrentar o desconforto da noite. Posso esperar pela claridade da manhã e partirei com alegria no bolso, à procura de um aconchego. De um abraço com dois braços e não apenas um encosto de um só braço. De um beijo com dois lábios e não de um toque atarantado. De um sono a quatro pernas em vez de uma caminhada só com duas (as minhas). De uma vida a duas vozes, de vozes que transmitem os pensamentos de duas mentes, que sendo diferentes as trocam como iguais

Porque o melhor do mundo é a intimidade, a amizade amorosa repartida num almofada, um abraço colado e sentido... de dois braços.

E a solidão da partida pela estrada aberta da liberdade só tem um braço, ou nenhum.