segunda-feira, 2 de março de 2020

Insubstituível



O cemitério está cheio de insubstituíveis.
E não obstante, o mundo continua a rodar, as coisas funcionam mais ou menos, como sempre....
Vista de longe, a humanidade prossegue o seu caminho, as pessoas choram e riem, nascem e morrer com toda a leveza habitual. Os incompententes são tão parecidos com os competentes, quanto os super-trabalhadores são semelhantes aos preguiçosos.
Grosso modo, tanto faz como fez.
Em suma, somos todos relativamente iguais, desnecessários e substituíveis. Ninguém, a título individual, faz falta nenhuma.
Claro que há um ou outro talento disperso que faz a diferença e pode dar um empurrão para que o progresso progrida, para que a mudança mude e para que os homens indiferenciados, abrindo os olhos perante a diferença, gozem o milagre produzido - na tecnologia, na medicina, na literatura e nas artes, no conforto dado pela modernidade.
Só que raramente este “milagre” é fruto de um só mago, daqueles insubstituíveis e únicos. Há uma corrente de esforços, um somatório de ciências e de dotes que se acumularam ao longo dos tempos e nos deram o que temos.
Pelo caminho muitos caíram, outros levantaram a bandeira e prosseguiram na senda, tão humana quanto natural, de substituir os insubstituíveis.
Quantas vezes com vantagem, para melhor.
As lágrimas da perda secam rapidamente porque atrás de um insubstituível perdido (e amado) vem uma novidade incrivelmente capaz... e quiçá melhor!
É a roda da vida.
Não vale a pena pensar que somos únicos, especiais, desejados, amados ou insubstituíveis. Porque é uma falácia. Somos todos dispensáveis.
Eu, pelo menos, sou! Dispensável, macro-inútil, rapidamente permutável e ainda mais facilmente esquecida.
A minha utilidade é pontual, posso ser interessante para certas tarefas, para certas pessoas e durante um espaço de tempo razoável, comportadamente limitado. Porque o que é demais, chateia.

Em termos micro,  posso dar jeito; em termos macro, sou perfeitamente dispensável. Somos todos, acho eu.
No curtíssimo prazo, tenho pequenos talentos e os seus utentes agradecem (mas passariam bem sem eles ou encontrariam outro produtor).
Tenho jeito para fazer sopas e para dar cambalhotas valentes, tenho jeito para escrever relatórios e para fazer limpezas, tenho gosto em plantar flores tal como para semear beijos e abraços em canteiros especiais, tenho jeito para ouvir os outros e pouco para me ouvir a mim e me cuidar.
Tenho talento maior para amar, para me dar, para construir pedaços de felicidade, a partir do nada e do ar....

Talento que vai com o vento... este o de amar!

Escoa-se como a água da onda na areia, quando chega à praia cheia de força e num minuto se esvai.

Chega com a força de uma ventania e, quem está de fora da tempestade, olha e apenas vê uma pequena folha que voa e não consegue agarrar. E suspira: não faz mal, é apenas mais uma pequena folha já engelhada pelo vento, perdeu-se... outra se há-de achar.
No chão, o jardim está coberto de folhas caídas e ainda viçosas, fáceis de apanhar... fáceis e boas... fáceis e úteis, fáceis substitutas substituíveis,
Deixá-la ir, a folha que voa, deixá-la partir no próximo tufão. Deixá-la jazer no lugar dos mortos que outrora foram vivos, úteis, amados e substituídos.
O mundo continua a rodar indiferente às substituições, aliás contando com elas para gerar mudança, energia e movimento.
Porque é disso que se faz a vida - matéria, energia e movimento.

Os afetos não existem nos elementos, são construção mental, algo de tão fluido quanto a leve brisa que agora rasteiramente levanta algumas folhas do chão.

Tão leve, tão invisível, tão inútil, tão fugidio e irreal é o amor.

Porque continua então a ser tão idolatrado? Porque tentam, eles os humanos estupidos, inúteis e substituíveis, agarrá-lo, preservá-lo e persistem em lamentar a sua perda? Como se isso fizesse algum sentido, Era como se quisessem que o vento coubesse numa mão fechada... ou mesmo em duas... de mãos dadas.

A realidade da perda, a aceitação da mudança e a consciência da substituibilidade são, no seu todo, a única verdade.

Ninguém nos quer realmente por aquilo que somos. Apenas nos apreciam pelo que valemos e pelo fazemos em proveito alheio.  Ninguém nos vê, de facto, para além da face superficial das nossas pequenas utilidades. Bondosamente, podem até amar os pequenos talentos e virtudes. Não choram muito a nossa perda (que se colmata por moeda de igual valor). Não gostam de nós por aquilo que somos, só o que fazemos é util e meritório. O nosso Eu verdadeiro interessa pouco, não se vê e quando alguém descarado o mostra, recebe uma cara de enfado - vira para lá essa alma que só atrapalha... e vai fazer a sopa!

Talvez reparem melhor no mal que fazemos. Esse não esquece. O ódio tem sempre mais força do que o amor. Bora lá fazer uma guerra... talvez assim se anule a indiferença e os outros nos passem a amar pelo medo. Talvez assim desejem ativamente o nosso desaparecimento. Seria uma morte honrosa, desejada pelas vítimas do nosso mal, do terror espalhado, do medo, da insônia, do horror.
Seria um morte insubstituível, a de um criminoso. Ninguém iria procurar outro para lhe ocupar o lugar ... pelo menos de forma consciente.

Se um homem bom morrer (ou uma mulher), ou até se apenas se afastar um pouco, o seu destino seguirá na maré do esquecimento e fatalmente da substituição. Se um homem mau partir, não será esquecido, quanto mais não seja para evitar que um substituto ocupe o seu lugar. E permanecerá na memória e no susto por muito tempo.

Afinal os cemitérios não têm apenas os queridos insubstituíveis, têm também malfeitores, indesejados que ninguém quer substituir . Esses querem-se mortos e bem mortos e não serão esquecidos!
Os outros passam... o bem não deixa rasto na areia da baixa-mar...